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No seriado original da Netflix Billions, o investidor de hedge fund Bobby “Axe” Axelrod é alvo de intensa e maquiavélica perseguição do procurador de justiça Chuck Rhoades. No 7o. Episódio, da segunda temporada, cooptado por um vereador da cidade, Axelrod adquire terras e títulos públicos do município de Sandicot (Nova Iorque) por um preço muito baixo.

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Quando a concessão de licença de funcionamento de um cassino na cidade é rejeitada, o valor dos títulos do município se deteriora vertiginosamente, frente à frustração das receitas futuras que seriam geradas pelo novo estabelecimento. As terras e os ativos se tornam micos no balanço do fundo, e Axelrod fica com US$ 400 milhões em títulos à beira do calote e uma perda de US $ 100 milhões em capital novo que ele imobilizou no município.

Como principal credor da dívida de Sandicot, o fundo de Axelrod tem um dilema moral pela frente: renegociar a dívida e ameaçar sua reputação perante sua clientela ou exercer seu direito de credor e ordenar o pagamento da dívida.

Alguns trechos do diálogo que se segue entre Axelrod e sua equipe de estrategistas financeiros é bastante revelador da colisão entre a lógica privada e a coisa pública. A personagem Taylor, genial estrategista e representativa do mais erótico sonho neoclássico do “homem econômico racional”, vai direto ao ponto:

Uma cidade é como um negócio. E quando uma empresa opera além de seus meios, quando as contas não fecham, e as pessoas responsáveis continuam sem se preocupar com esse fato, com certeza que algum ‘padrinho’, geralmente sob a forma de governo federal, virá para cobrir o buraco; bem, isso realmente me ofende.[1]

A única ideia real na mesa é a mais condenável: a austeridade. O que isso basicamente significa é que a cidade terá que pagar à Axe Capital antes de qualquer outra despesa. Pense nisso no nível municipal. Isso afetará as escolas, os empregos da cidade, os serviços públicos, as receitas públicas e os negócios que dependem do município para funcionar. A criminalidade tende a aumentar. As escolas vão fechar. A força policial sofrerá cortes. Prevê-se um efeito viral que pode chegar ao ponto de transformar Sandicot em uma cidade fantasma. Só assim o hedge fund receberá o que lhe é devido. E quando Axelrod insiste no dilema entre o escândalo de relações públicas e seu direito como credor, Taylor arremata:

As pessoas podem dizer que você destruiu esta cidade. Mas, na minha opinião, esta cidade machucou a si mesma. As correções estão em ordem. Há uma maneira de fazer isso funcionar, e dessa forma é difícil, mas necessário. Taleb disse, torne-se anti-frágil ou morra.[2]

Ainda não convencido da saída pela austeridade, Axelrod pede à sua esposa, Lara, sua opinião. Ela o aconselha: “Alguém alguma vez nos ajudou?” A cena final mostra Axe dirigindo um carro esporte, enquanto ordena de seu telefone: “execute todos os bens do município – propriedade , utilitários, máquinas, veículos, edifícios, tudo – até mesmo o prédio da câmara dos vereadores. E não pare até conseguir tudo o que eles nos devem”.[3]

A arte ensinando a enxergar a realidade

Apesar da dramaticidade do episódio, o seriado consegue pintar com cores fortes o conceito bastante abstrato da austeridade, bem como suas implicações complexas quando colocado em prática na esfera pública. Senão vejamos.

Em seu livro “Austeridade: a história de uma ideia perigosa” (clique aqui para uma crítica do livro), Mark Blyth tenta fazer uma antologia das vertentes teóricas que dão suporte à austeridade. O autor volta ao pensamento de John Locke, David Hume e Adam Smith no iluminismo clássico e mostra o viés anti-Estado destes autores. Adiante, o autor apresenta a mais famosa caracterização do pensamento da austeridade americana, encontrada numa frase atribuída ao secretário do tesouro do presidente Herbert Hoover, Andrew Mellon, em resposta à crise do final da década de 1920 e início 1930:

“Liquide mão-de-obra, liquide estoques, liquide os agricultores, liquide imóveis”. O resultado seria que “a podridão [será expelida] do sistema. … As pessoas vão … viver uma vida mais moral … e as pessoas mais empreendedoras vão pegar os destroços de pessoas menos competentes. “[4]

Apesar de tais exaltações morais, a administração Hoover não se alinhou à abordagem “liquidacionista” de Mellon.

Outra expressão particularmente clara desta visão de mundo pode ser encontrada em publicações da Conferência sobre Desemprego, de 1923, criada por Hoover, enquanto secretário de comércio na gestão do Presidente Coolidge. O principal autor do relatório, o economista da Universidade de Columbia Wesley Mitchell, argumentou que “um período de depressão produz após algum tempo certas condições que favorecem um aumento da atividade empresarial … [que, paradoxalmente] também causar a acumulação de estresses dentro do sistema equilibrado de negócios , Salienta que, em última análise, minam as condições em que a prosperidade repousa”.[5]

Blyth afirma que esta tensão austríaca no pensamento americano sobre a inevitabilidade de ciclos, a centralidade do empreendedor e a importância do fracasso, coexistiram com e foram impulsionados por outra linha do pensamento econômico norte-americano que enfatizou a necessidade de uma política de “finanças sólidas“. Favorecidas pela comunidade bancária, estas ideias reforçaram o flanco austríaco insistindo que a confiança empresarial, a chave para o crescimento puxado pela oferta [supply-side growth], apenas seria restabelecida se o governo sinalizasse de forma crível que permitiria que o processo emético [de purificação] se desdobrasse da forma devida via austeridade.[6]

Enquanto isso, “do lado de baixo do Equador…”

O governo Temer anunciou ontem mais uma parte do plano de redução do tamanho do Estado brasileiro, com um audacioso plano de privatização de 57 empresas estatais, dentre elas, a Casa da Moeda e o lucrativo Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. O anúncio de ontem reforça as iniciativas de flexibilizar as leis trabalhistas e reformar a previdência social.

Como ilustrado pelo seriado Billions, o mercado financeiro festejou a notícia, acompanhado por uma parcela expressiva da elite brasileira. Afinal, era este o desfecho previsto desde o início da ofensiva contra o então recém reeleito governo Dilma.

Não se pode desconsiderar que Dilma é, em grande parte, responsável pela construção da “ponte para o futuro” que a alijou do poder. Ao se aliar ao que há de mais arcaico na estrutura política brasileira, Dilma colocou seu pescoço na forca, confiante na solidez de uma aliança que não se mostrou duradoura.

Uma vez patente o fracasso da guinada desenvolvimentista de seu governo, os desajustes econômicos, fiscais e monetários ensejaram o pretexto político para a troca no cargo de presidente da República. O ensaio ortodoxo no início do seu segundo mandato serviu apenas para evidenciar a fraqueza política de seu projeto de governo. O ajuste fiscal de Levy não tinha a menor chance de dar certo, bem como o ajuste pós-Levy, com o todo-crível Meirelles, também se vê às voltas com a síndrome fiscal do “pote de Danaides”[7].

O impeachment significou mais do que um trauma no ciclo político-eleitoral; tratava-se do prenúncio de mais uma fase da reforma minimalista do Estado brasileiro, iniciada no governo Collor. Temer representa a continuidade deste projeto, o caminho (embora pouco católico) para o assentamento de um figurino comportamental projetado da esfera individual à esfera do Estado, a saber: a austeridade. Trata-se do discurso que aplica a lógica do orçamento familiar à gestão do Estado[8].

Enxergar apenas virtudes no setor privado e todos os vícios no setor público é uma visão de mundo (também coloquialmente entendida como “ideologia”), e não um mero ponto de vista técnico. A liquidação de ativos do Estado (da ordem de R$ 44 bilhões) visa, como sempre, eliminar fontes de ineficiência operacional enquanto reduz a dívida pública. Se efetivamente atinge tal objetivo é algo ainda por ser demonstrado. Todavia, causa estranhamento o simultâneo projeto de anistia das dívidas empresarias (de cerca de R$ 543 bilhões) para com o Estado.

Como se viu brevemente acima, estas ideias não são novas e sua aparência científica não parece sobreviver à contextualização histórica. Por ser uma ideia perigosa, a austeridade deve ser apreciada com muito cuidado e muita temperança.

 

Notas

[1] “A town is like a business. And when a business operates beyond its means, when numbers don’t add up, and the people in charge continue on heedless of that fact, sure that some sugar-daddy, usually in the form of the federal government, will come along and scoop them up and cover the shortfalls, well, that truly offends me.”

[2] “People might say you hurt this town. But in my opinion, this town put the hurt on itself. Corrections are in order. There’s a way to make this work, and that way is hard, but necessary. Taleb said, become anti-fragile, or die.”

[3] O seriado força um pouco a barra para evidenciar este aspecto da austeridade e peca pelo excesso de simplicidade ao tartar dos títulos municipais, como analisou Joe Mysak aqui. https://www.bloomberg.com/news/articles/2017-05-02/here-s-what-billions-gets-wrong-about-the-municipal-bond-market

[4] “Perhaps the most famous characterization of American austerity thinking comes from a line attributed to Herbert Hoover’s treasury secretary Andrew Mellon in response to the crisis of the late 1920s and early 1930s: “Liquidate labor, liquidate stocks, liquidate the farmers, liquidate real estate.” The result would be that “rottenness [will be purged] out of the system. … People will … live a more moral life … and enterprising people will pick up the wrecks from less competent people.” Adam Smith, it seems, was alive and well on the Potomac. Yet, despite the moral invocations, the Hoover administration did not exactly cleave to Mellon’s “liquidationist” line.” Seção “Austerity American Style: Liquidationism” (Blyth, Austerity, p. 137). A citação da frase de Andrew Mellon apareceu nas memórias de Herbert Hoover, a saber: Herbert Hoover (1941), The Memoirs of Herbert Hoover: The Great Depression, 1929 (New York: The Macmillan Company), p. 30.

 

[5] “A particularly clear expression of this theory can be found in publications of the 1923 President’s Conference on Unemployment, which Hoover had created as commerce secretary under President Coolidge. The lead author of the report, Columbia University economist Wesley Mitchell, argued that “a period of depression produces after some time certain conditions which favor an increase of business activity … [that paradoxically] also cause the accumulation of stresses within the balanced system of business, stresses which ultimately undermine the conditions upon which prosperity rests.” Fonte: Wesley C. Mitchell, “Business Cycles” in Committee of the President’s Conference on Unemployment, Business Cycles and Unemployment (New York: McGraw-Hill 1923), 10, quoted in Dean L. May, From New Deal to New Economics: The American Response to the Recession of 1937 (New York: Garland Press, 1981), 69.

[6] “This Austrian strain in American thinking about the inevitability of cycles, the centrality of the entrepreneur, and the importance of failure, coexisted with and was boosted by another line of American economic thought that stressed the need for a policy of “sound finance.” Favored by the banking community, these ideas reinforced the Austrian flank by insisting that business confidence, the key to supply-side growth, would only be restored if the government credibly signaled that it would allow the emetic process to unfold as it had to via austerity.”

 

[7] https://mitologiahelenica.wordpress.com/2015/02/14/o-destino-das-danaides/

[8] É mais uma ironia da história que a conversão do coisa pública em uma réplica do orçamento familiar caiba ao presidente que ainda reconhece na mulher a inescapável condição de dona de casa (linda, recatada e do lar); ambas visões que remontam a alguns séculos atrás.