Cenário inflacionário cria terreno para mais falências e aquisições

Para o economista André Roncaglia, sobrevivem as empresas que acumulam caixa ou têm maior liquidez no acesso ao mercado financeiro

Publicada na edição Impressa do Caderno EU& Valor – 26/11/2021

O economista André Roncaglia, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), prevê aumento de aquisições de pequenas empresas por maiores, motivado pela fraqueza econômica e crédito mais difícil. Trechos da entrevista:

Valor: Mesmo no plano internacional, uma certa inflação era esperada, mas não tanta. Por que a surpresa?

André Roncaglia: Pensávamos que a retomada das cadeias de suprimento fosse ser mais suave. Mas no meio do caminho houve uma reconfiguração das cadeias, com mais nacionalismo. Vários países começaram a reconstruir capacidades de produção que tinham desnacionalizado. Outra surpresa foi a postura da Opep. O preço do petróleo não dá mostras de arrefecer. Como o petróleo é o “sangue da indústria”, os preços estão impulsionados desde a base de custos. O Brasil é um país que importa uma quantidade muito elevada de insumos. É inevitável que a depreciação do câmbio gere um repasse cambial para o nível de preços, ainda mais com a política atual da Petrobras.

Valor: Ainda há pressões para 2022?

Roncaglia: Os serviços estão abrindo gradativamente e podem ir mais devagar se houver mais ondas da pandemia. As tentativas de reeleição de Bolsonaro vão apertar a questão fiscal com força. Aqui, a divisão no mercado financeiro está ficando cada vez maior. Imagino uma reação intensa dos mercados se Bolsonaro conseguir aprovar um aumento dos servidores públicos, por exemplo. O mercado financeiro parece acreditar, neste momento, que há espaço fiscal para tudo isso, mas temo que as estimativas de receita vão ser frustradas. Quando forem, o risco-Brasil vai se acelerar, inclusive por receio, que me parece sem base, de que o Brasil não honre seus pagamentos. Há um processo forte de inversão de expectativas, uma frustração, principalmente para o mercado financeiro”

Valor: O nível da inflação atual torna a indexação um problema?

Roncaglia: O IGP-M, por ser um índice ao produtor e afetado pelo câmbio, não é todo transferido para o IPCA, mas reforça a indexação de serviços. Agora isto não é um problema, porque os serviços ainda estão em parte paralisados. Quando voltarem, sem uma mudança nos padrões de indexação, por exemplo dos aluguéis, a tendência é pressionar ainda mais o IPCA no período seguinte. Isto pode significar mais pressões de custo, de novo sem relação com demanda e oferta de aluguéis. Esse é o problema da indexação informal. Por exemplo, os médicos, que reajustam seus preços de consulta de acordo com o IGP-M, mesmo se a demanda está baixa, sempre que vira o ano. É a chamada “inflação gregoriana”. Esse efeito está dormente agora, mas pode voltar se a economia se acelerar. Do lado [dos serviços de] utilidades públicas,os chamados preços administrados, podemos ter uma pressão grande.

Valor: Essa inflação provoca desarranjos na economia?

Roncaglia: Se há uma pressão de custo e a empresa não conseguerepassá-la para o preço, como sugerem os dados do varejo e daindústria, a tendência é que companhias com maior colchão financeiro,maior caixa, sobrevivam melhor. Disso resulta um processo de seleção das empresas mais resistentes. Quem conseguiu acumular caixa ou tem maior liquidez no acesso ao mercado financeiro sobrevive. Quais são essas? As empresas maiores, que conseguem crédito com valor mais razoável. Se a situação atual persistir, exaurindo a liquidez e a reserva das empresas pequenas e médias, podemos ter um processo mais acelerado de falências, concordatas e principalmente fusões e aquisições: as grandes vão comprando as pequenas para aproveitar o capital acumulado ali. É bem possível e creio que vai acontecer, se não houver melhoria das perspectivas.

Valor: As altas da Selic serão capazes de conter o estrago?

Roncaglia: A taxa de juros é como uma corda: ela consegue segurar, mas não empurrar a economia. Para que a política monetária tenha eficácia, como previsto no regime de metas de inflação, a economia tem que estar crescendo. Mas o que está ocorrendo agora é como um choque. A economia tomou um susto, o choque de oferta. Não é como alguém que corre uma maratona e por isso a frequência cardíaca fica mais alta. No susto, a freqüência cardíaca sobe, depois cai. Então usar a política do BC para segurar o juro vai baixar a inflação? Vai. Mas os efeitos distributivos são mais nocivos do que se a economia estivesse superaquecida. Aí caberia cortar crédito para os setores que crescem demais, segurar a demanda das famílias. Mas o que fazer quando a economia está com ociosidade grande da indústria, 13% de desemprego, varejo estagnado?

Valor: O que pode, ao certo, o Banco Central?

Roncaglia: O ajuste pode ser mais suave se o BC conseguir coordenar as expectativas. O problema é que persiste o ruído entre a política fiscal e a monetária. O sintoma é o presidente do BC, meses após receber autonomia operacional, ter que se reunir com o presidente do Congresso para debater reformas, ou seja, opinar em política fiscal. Essa exorbitância da função sinaliza que o governo tem dificuldade de coordenar as diretrizes de política econômica. No momento em que essa conversa acontece, curiosamente, o mercado reage bem. É uma sugestão de que o BC está tentando diminuir o problema fiscal. O problema é que se der errado o mercado vai concluir que nem o presidente do BC consegue colocar as coisas no eixo. Aí a frustração das expectativas é ainda mais intensa.

Valor: O que mais afeta as expectativas?

Roncaglia: O maior problema é o risco político, não necessariamente associado à área fiscal, que é só parte do risco-Brasil, na verdade risco-Bolsonaro. Este tem a ver com a frente ambiental e com as ameaças, claramente percebidas, à higidez do Estado brasileiro, com constantes ameaças às instituições, seja no aparelhamento das forças policiais, seja no questionamento ao Judiciário. A promiscuidade com o Legislativo também conta. Há um processo forte de deterioração de expectativas, na verdade uma inversão de expectativas, uma frustração, principalmente para o mercado financeiro. Tudo isso compõe um risco- Brasil que se manifesta na desconfiança com relação à moeda, que leva os agentes financeiros a tomar posições agressivas contra o real. Como resposta, o BC atua no mercado futuro, tentando conter os estragos. Ao longo de 2021, ele atuou fortemente em swaps cambiais.

Valor: Bons números na área fiscal não deveriam melhorar as expectativas?

Roncaglia: O resultado fiscal positivo, que na minha visão dá ao mercado financeiro um pretexto para não desembarcar de vez do governo Bolsonaro, não apenas é transitório como, quando acabar, vai ser bem rápido. Esse espaço fiscal está muito apoiado na inflação, que melhora a arrecadação ao subir. E a retomada da economia até os últimos meses foi intensiva, inclusive na indústria, que gera ICMS e IPI. Os analistas celebram o resultado fiscal positivo, mas agora o BC está subindo a taxa de juros e a economia está arrefecendo. O benefício fiscal vai diminuir.

Valor: A inflação é mais pesada para os mais pobres: o INPC, que capta a cesta de consumo da baixa renda, subiu mais do que o IPCA, que capta a economia como um todo. Isto deve se repetir no próximo ano?

Roncaglia: A energia e o transporte consomem muito do orçamento das famílias de baixa renda no Brasil. A questão dos alimentos tem aspectos não monetários importantes, ligados à mudança da política de estoques reguladores a partir de 2015. Dados da Conab [Companhia Nacional de Abastecimento] mostram uma queda vertiginosa dos estoques de praticamente todos os grãos. Não há como estabilizar os preços desses componentes muito básicos na cesta de consumo das famílias. Estamos com esse front desguarnecido, o que nos deixa dependentes das forças de mercado. Elas já têm respondido, mas a resposta não é de um dia para o outro. E não sabemos como vai se desenvolver, porque a crise hídrica pode atingir diferentes culturas de maneiras diferentes. No caso dos grãos e hortaliças, creio que em pouco tempo podemos ter uma solução. No caso da proteína animal, o problema é mais persistente.